quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Gota, a doença dos reis

Hipócrates descreveu casos de gota séculos antes de Cristo. A partir da descrição detalhada dos sintomas articulares causados pela doença (como costumavam ser as observações clínicas do pai da medicina), a gota passou a ser conhecida como “a enfermidade dos patrícios” ou “a doença dos reis”.
Dr. Dráuzio Varella
Nos primeiros anos da era cristã, no Império Romano, Sêneca observou que mesmo as mulheres abastadas sofriam da doença, uma vez que “começavam a igualar-se aos homens em todos os aspectos da lascívia”.
A intoxicação crônica pelo chumbo presente nos alimentos e no vinho talvez tenha sido a causa da epidemia de gota que se disseminou entre os habitantes da Roma antiga e da Inglaterra vitoriana, porque o excesso de chumbo interfere no mecanismo de excreção do ácido úrico pelos rins. Do século XVII ao século XIX, na Inglaterra, a gota constituiu verdadeira epidemia.
Numa época em que não existiam medicamentos para reduzir os níveis de ácido úrico no sangue nem anti-inflamatórios disponíveis, padeceram as dores articulares da gota monarcas como Alexandre, o Grande, Henrique VIII e Carlos Magno; artistas como Voltaire e Leonardo da Vinci; cientistas que mudaram a forma de entender o universo como Charles Darwin e Isaac Newton. A doença era associada à vida dos que cediam ao pecado capital da gula, diante da mesa farta.
Causas da doença – A gota é causada pelo aumento da concentração sanguínea de ácido úrico, que dá origem a episódios recorrentes de artrite mediada pela deposição de cristais desse ácido nas articulações.
O homem é o único mamífero que desenvolve gota espontaneamente, porque é provável que apenas nós sejamos capazes de desenvolver os níveis elevados de ácido úrico na circulação (acima de 7,0 mg/dL) requeridos para desencadear as crises. Os demais mamíferos apresentam níveis muito mais baixos (0,5 a 1 mg/ dL), insuficientes para a cristalização nas articulações.
Essa predileção por nossa espécie é explicada porque os mamíferos possuem uma enzima chamada uricase, muito eficaz na degradação do ácido úrico. No período Mioceno, para nossa infelicidade, nossos ancestrais sofreram diversas mutações que silenciaram o gene responsável pela integridade da uricase. Como consequência, nós e nossos parentes mais próximos, chimpanzés, gorilas, orangotangos e bonobos, descendentes dos mesmos antepassados, passamos a apresentar níveis mais elevados de ácido úrico. Nos grandes primatas citados, entretanto, os níveis são mais baixos do que os nossos (1,5 a 2 mg/dL) e insuficientes para provocar quadros de dor articular.
Implicações da dieta – Em março de 2009, Choi e colaboradores publicaram no “The New England Journal of Medicine”, uma das mais prestigiosas revistas médicas, o mais completo estudo já realizado com a finalidade de avaliar as implicações da dieta no aparecimento da gota. Os pesquisadores avaliaram as características dietéticas de 47.150 homens que fazem parte do Health Professionals Follow-up Study, grupo que vem sendo seguido há vários anos para o estudo das implicações do estilo de vida no aparecimento de uma série de doenças. Os participantes foram acompanhados durante 12 anos.
Os resultados mostraram que o risco de desenvolver gota estava aumentado no caso das dietas ricas em carne -especialmente carne vermelha – e frutos do mar, mas pobres em leite e seus derivados. A probabilidade de desenvolver a doença aumentou 21% para cada porção adicional de carne ingerida diariamente e 7% para cada porção semanal de frutos do mar incluída na dieta.
Características epidemiológicas – O estudo ajuda a entender algumas características da epidemiologia da gota:
1) Populações indígenas com dietas ricas em leite e vegetais e pobre em carnes costumam apresentar níveis mais baixos de ácido úrico na circulação (aproximadamente iguais aos níveis encontrados nos grandes primatas citados anteriormente);
2) Doença desconhecida entre os primitivos Maoris da Nova Zelândia, a gota se tornou prevalente entre eles a partir de 1.900, à medida que adotaram dietas mais ricas em carnes e carboidratos. A incidência de gota nesse povo cresceu paralelamente à de obesidade;
3) Como algumas populações indígenas apresentam níveis relativamente altos de ácido úrico, apesar de dietas ricas em leite e vegetais e pobre em carnes, é provável que fatores genéticos exerçam influência na instalação do quadro;
4) Gota era doença rara entre os negros africanos que faziam uso de dietas com ênfase nos laticínios e vegetais. A prevalência se manteve baixa nos negros norte-americanos até os anos 1.950, quando mudanças alimentares próprias da vida urbana levaram ao crescimento do número de casos, ao mesmo tempo em que houve aumento exponencial do número de portadores de diabetes, obesidade, hipertensão arterial e doenças cardiovasculares.
Com as transformações sociais ocorridas no final do século XX, parte expressiva da população teve acesso a dietas ricas em alimentos gordurosos, porém pobre em vegetais e laticínios. Tais preferências alimentares, associadas ao estilo de vida mais sedentário que a humanidade já experimentou, criaram condições para o surgimento das epidemias de obesidade, diabetes, hipertensão arterial, doenças cardiovasculares e certos tipos de câncer.
A gota deve ser incluída nessa lista de flagelos do homem moderno.

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